A VELHA MÁQUINA
DE ESCREVER
No meio dos livros antigos encontro a minha pasta velha. Uma pasta de cartolina, amarela, com elásticos. Seu plástico está todo riscado, esfolado, seu papelão está amassado, rasgado, fruto dos muitos anos de serviços que ela me prestou.
Ali eu encontro sermões manuscritos, do meu tempo de presidente de mocidade, tempo de seminarista tempos de Igreja Batista em Sumarezinho, Igreja Batista de Vila Mirante e Igreja Batista de Vila Souza, todas na capital paulista.
Velhos tempos! Sermões simples, feitos com canetas coloridas e grifados com giz de cera. Eram escritos em folhas de sulfite, dobradas ao meio, as quais eu levava em minha bíblia. A imaginação viaja. Relembro velhos púlpitos que ousaram confiar num adolescente pregador. "Sai da Caverna", "Defina-se diante de Deus", "Quente ou Frio?", "Levanta-te e Anda", são alguns manuscritos já rasgados e amarelados pelo tempo. Quanta saudade!
Continuo sondando o conteúdo da minha relíquia. Encontro os meus sermões do início do pastorado, numa época pré-informática, onde, senão usássemos a caneta, usávamos a máquina de escrever. Alguém ainda se lembra dessa velharia? Meu pai tinha uma Remington preta, antiga e quase centenária. Depois compramos uma portátil, e, por fim, a minha Olivetti verde e portátil, que tão útil me foi!
Meus velhos sermões datilografados! Eu escrevia os títulos primários e secundários com a fita vermelha, e o restante com a tinta preta. Quando errava, ou furava o papel tentando apagar ou passava o "branquinho", uma tinta branca corretiva, que nunca era da mesma cor da folha usada. Lá estão os borrões, saudosos borrões, escondendo o cuidado em levar ao púlpito o melhor que pudesse, ainda que o meu melhor fosse tão limitado!
Para grifar partes do texto, usava aquele famoso risco preto depois de escrever. Para transcrever um texto bíblico usava aspas, pois não havia itálico. Para anotar ilustrações, a deficiência de quem não soube colecioná-las: "falar agora a ilustração da laranja" - "que laranja?", pergunto agora, 15 anos depois. A laranja já secou há muito, e eu não me lembro do que falava! Por vezes o papel era fino demais, e eu colava duas sulfites, procurando engrossá-lo mais, para não voar durante a pregação. Certa feita fui buscá-lo na porta da igreja, no meio de uma pregação, sob o riso simpático e condescendente dos presentes ao culto. Alguns sermões na pasta estavam com cor de terra, oriunda de acampamentos de jovens e adolescentes em que fui conferencista. Outros estavam com sinais de marca d'água, não feitos por carimbos de ferro, mas por lágrimas derramadas ou gotas de suor durante a pregação.
Ah, a minha velha máquina de escrever! Parece que a inspiração era mais profunda quando nela eu escrevia, parece que a responsabilidade de escrever sem errar, num equipamento sem a tecla "DELETE", me dava uma felicidade maior, uma decisão mais firme de fazer certo uma única vez. Hoje, mesmo nesta crônica, perdi o número de "DELETEs" que já utilizei. Imaginem usar borracha, gilete ou branquinho tantas vezes numa folha de papel...
A máquina de escrever está aqui, no escritório, fechada na capa plástica há 7 anos. Nunca mais a utilizei. Sua fita de tinta deve estar ressecada, nem sei se encontrarei "refil" com facilidade, no mercado. Mas, como prova de outros tempos e testemunho de que é possível vencer as dificuldades, cá está ela, inteira, funcionando, pronta para tornar-se o "plano B" numa eventualidade. Ela me faz lembrar das origens do ministério.
Voltar às origens é algo que, de quando em vez, temos de fazer. Muitas vezes nos tornamos tão amargos, tão diferentes, tão metidos à adulto, que perdemos as nossas características de espírito e temperamento! É como quando encontrarmos velhos amigos, amigos de outros tempos, que fazem cara feia ou tratam o outro com desdém, pessoas que, antigamente, trepavam juntas em árvores para panhar frutas ou chutavam bola nos campinhos da periferia. Hoje se julgam muito cultas, muito adultas, muito importantes. Acho que é por isso que alguns pastores, no afã de justificarem tantas mudanças, gostam de trocar de nome, de denominação, de sistemas. Estão enjoadas de serem tão diferentes do que eram! Pensam que agora só lhes resta mudar de nome. Mas no inconsciente sonham com os dias do passado, sonhos doces de um tempo que não volta mais!
Vem bem à calhar a admoestação do Senhor, feita na epístola à Éfeso, em Apocalipse 2.5: "Lembra-te, pois, donde caíste, e arrepende-te, e pratica as primeiras obras; e se não, brevemente virei a ti, e removerei do seu lugar o teu candeeiro, se não te arrependeres.", porque "abandonaste o teu primeiro amor" (Ap 2.4).
Acho que a minha velha máquina de escrever me diz coisas, ela, que não tem boca, mas que fala tão profundo! Ela me diz que devo ser tão dedicado ao ministério quanto o fui no início. Ela me diz que devo fazer, dizer e escrever coisas tão relevantes, como o fiz no princípio. Ela me diz que a humildade deve ser a marca da minha autenticidade, porque o valor do meu trabalho não está no equipamento que uso, mas naquilo que faço, como o foi com as coisas que nela eu escrevi, uma máquina simples em papel medíocre, mas palavras que atravessaram décadas, não por terem sido ditas por mim, mas por terem sido feitas sob a orientação de Deus e sob forte desejo de fazer o melhor. Ela diz que a simplicidade é a coisa mais bela e permanente. Já tive 3 computadores, não senti amor por nenhum, pois são máquinas impessoais. Mas a minha velha máquina, simples, barata, limitada, está aí, como membro do meu escritório e equipamento da minha vida.
Será que nós não temos agido também como computadores? Será que não nos fizemos tão descartáveis quanto eles, nos lugares onde trabalhamos, nas igrejas onde congregamos, entre os amigos com quem convivemos? Será que não somos complexos demais? Será que não temos uma casca de primeira e uma polpa vazia?
Você, respeitável leitor, não teria uma máquina de escrever da qual se lembrar? Quem sabe tenha sido muito mais simpático e cordial no passado, mas agora tem se tornado um ser complicado, complexo, orgulhoso, cheio de detalhes e cerimônias, sorrindo o sorriso amarelo da educação fria, sem perceber que há um coração e uma alma dentro de si? Quem sabe não seria a hora de voltar a ser simples, cordial, amigo, ter tempo para gastar com as pessoas que lhe são queridas? Falando de pastores (eu sou um, sei bem onde os nossos calos apertam...) muitos tornaram-se, em sua profissão, "profissionais", no sentido pejorativo da palavra: são administradores, professores, pregadores, gestores, conselheiros, etc. Contudo, não sabem amar. E quando forem embora de suas igrejas, não deixarão saudades, porque ensinaram suas comunidades a ver no pastor um "profissional", não um amigo, um pai, uma companhia imprescindível, um companheiro. Há igrejas delegando ao departamento de recursos humanos de uma empresa tercerizada a escolha de seu pastor: ele tem que preencher um "perfil profissional". Foi-se o tempo em que tinha que preencher o coração da igreja e ser a jóia do coração de Deus. Resultado: igrejas grandes (e outras pequeninas), mas igrejas frias.
É hora de voltarmos às máquinas de escrever. É hora de arrebentar pipocas, abrir uma tubaína e chamar a família para um gostoso bate-papo. É hora de revalorizar o púlpito e tudo o que se faz. É hora de cultivar as coisas antigas que abandonamos, coisas boas, claro. É hora de trazermos as cores do passado de volta aos nossos olhares. É hora de pegar a agenda velha de telefones e ligar para quem foi importante para nós. É hora de rever as fotos que eternizaram momentos desde há muito esquecidos, é tempo de agradecer a Deus por tantas experiências já vividas. E trazê-las de volta, ainda que com roupagem nova, madura, atual.
Fechando a minha pasta amarela, amarelada e velha, fecho também um acordo diante de Deus e comigo mesmo: preciso voltar "ao primeiro amor".
E você?
Pr. Wagner Antonio de Araújo
Igreja Batista Boas Novas de Osasco, SP
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