15 fevereiro 2018

O DIREITO DE NÃO CRER


por Vitor Hugo Mendes de Sá
Tenho um profundo respeito aos ateus. E logo explico por que.
Há, pelo menos, dois tipos de ateus. O declarado e o tímido.
Chamo de declarado aquele que confessa seu ateísmo com sobriedade serena — compreendendo as fraquezas humanas que levam alguém a crer na existência de Deus, e até convivendo de modo amistoso com amigos que demonstram tal falta de racionalidade lógica ou de equilíbrio realista diante da vida — e o ateu que se manifesta sempre com evidente sarcasmo ou atitude de confronto, no mais apurado estilo de Richard Dawkins e Christopher Hitchens.
O ateu tímido, quase envergonhado do próprio ateísmo, é o agnóstico, como
Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, para ficar restrito à área da literatura brasileira. Na argumentação agnóstica, como se sabe, a questão da existência ou da inexistência de Deus não possui comprovações científicas. Por isso, não há como abordá-la a partir de elementos confiáveis para a razão. Trata-se de um tema extemporâneo e irrelevante em nossos dias, quando os fenômenos têm explicações suficientemente naturais para desvinculá-los do sobrenatural. Sendo assim, que cada um, ateu ou não ateu, siga seu caminho sem maiores importunações.
Convivi durante a infância e a adolescência com um divertido ateu: meu tio Otávio.
Chargista da Folha da Tarde, vespertino do Estadão na cidade de São Paulo, ele era um boêmio inveterado e, talvez por força da profissão de caricaturista, dono de um bom humor imbatível, pronto a fazer troça, responder com ironia e tecer considerações de pontiagudo escárnio sobre qualquer assunto. Costumava afirmar que não temia ser mandado para o inferno devido à sua incredulidade porque — citando-o literalmente — o céu é um lugar muito monótono.
O filósofo Comte-Sponville justificou o ateísmo que professava por achar que a
ideia de um Deus perfeitamente compassivo e amoroso, que perdoa o pecador de todos os seus pecados e ainda lhe concede vida eterna para além da morte, é boa demais para ser verdade. De qualquer modo, o índice de ateísmo no mundo continua crescendo. Uma das últimas pesquisas, realizada em 2014 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, informa que 8.9% da população brasileira declara não crer em Deus. Por motivos diversos.
Agora voltemos à minha afirmação inicial: tenho profundo respeito aos ateus.
Em primeiro lugar, por uma questão de princípios. Acredito piamente no direito à
liberdade religiosa. Thomas Helwys, um dos primeiros líderes batistas na Inglaterra, anunciava que a liberdade religiosa se constituía na marca distintiva da modernidade. Por sua autonomia como indivíduo, o cidadão pode confessar o credo que desejar. Sem perseguições da parte do Estado. O princípio da liberdade religiosa estabelece a separação entre a Igreja e o Estado laico — expressão muito na moda hoje. Mas liberdade religiosa para crer em qualquer artigo de fé significa também liberdade para não crer ou não adotar nenhuma religião institucional. Liberdade do indivíduo para optar pelo ateísmo, se preferir. Sem que isso o transforme em um pária, numa aberração ou em um dessemelhante. Enfim, respeito profundamente os ateus porque são seres humanos livres para abraçar o ateísmo.
Em segundo lugar, respeito os ateus pela fé que professam. Uma fé admirável.
Se levarmos em consideração o pressuposto agnóstico, de que não há
considerações razoáveis a fazer em relação ao ser divino, concluímos que tanto a
afirmação quanto a negação da existência de Deus depende de uma iniciativa de fé. E é exatamente neste ponto que expresso meu respeito pelos ateus, pois só mesmo uma fé encorpada para propagar que tudo — universo, estrelas, planetas, montes,
florestas, oceanos, vida, organismos e inteligência humana — veio à existência de
maneira espontânea e aleatoriamente combinada.
Deus não é um objeto concreto para ser levado a um laboratório e examinado com
lâminas. Mas a fé é uma realidade factível. Pessoas creem. E pessoas vivem com
devoção a sua fé. Dessa maneira, em vez de falarmos sobre provas da existência de
Deus — como as cinco mencionadas por Aquino na Idade Média — é melhor
considerarmos os argumentos que levam pessoas a crer em sua existência. Teólogos costumam se referir aos argumentos ontológicos, cosmológicos, teleológicos e outros. Pessoas escolhem crer na existência de Deus à luz de argumentos como esses. E alguns escolhem não crer, por acharem que são argumentos inconsistentes.
A última palavra, entretanto, será sempre uma expressão de fé. Cremos que Deus
existe por causa disso, e disso, e disso. Ou não cremos que Deus existe devido a isso, a isso e a isso. As alegações finais são, inevitavelmente, uma opinião — e não uma comprovação peremptória e indiscutível — de um lado ou de outro. Ateus e crentes são muito mais parecidos do que aparentam. Nesse caso, ambos lançam mão da mesma ferramenta para elaborarem seus arrazoados. A ferramenta da fé. Para afirmar a existência de Deus é preciso fé. Para negá-la, é também preciso fé. Na ausência de provas finais e definitivas, a fé fala mais alto, como observou Paul Tillich: “a fé se justifica a si mesma e defende seu direito contra todos que a atacarem, porque ela só pode ser atacada em nome de uma outra fé — e este é o triunfo da dinâmica da fé: que toda negação da fé já e expressão de fé”.
Crer que há um Deus criador e que tudo se formou a partir de um ato divino, num
extenso processo de desenvolvimentos e evoluções, é uma declaração de fé admirável. Mas crer que não há um Deus criador e que tudo se formou ao longo de trilhões de anos, de modo voluntário e autodeterminante, é ainda mais admirável. É uma fé muito consistente e ardorosa, capaz de se posicionar acima do bom senso e da lógica mais simples da causa e efeito. Respeito os ateus que a professam.
(Autor: Carlos Novaes)

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