27 fevereiro 2024

QUEM ESCREVEU OS QUATROS EVANGELHOS?

 

judas
“Quem escreveu os Evangelhos?” pode parecer uma pergunta bem estranha. Pegue qualquer Novo Testamento e ele lhe dirá, logo no início de cada Evangelho, quem foi seu autor. Lá encontramos que os autores dos Evangelhos foram, pela ordem em que aparecem, Mateus, Marcos, Lucas e João, os quais foram elevados à santidade. A tradição da Igreja também nos diz que Mateus e João foram dois dos doze apóstolos, que Marcos foi um secretário do apóstolo Pedro, quando ele pregou em Roma, e que Lucas foi companheiro do apóstolo Paulo. (Paulo não foi um dos doze apóstolos, nem companheiro de Jesus.)
Em suma, essa tradição da Igreja alardeia quase um elenco estelar de escritores com uma boa alegação para uma quantidade razoável de credibilidade histórica, autores que foram ou testemunhas oculares, ou íntimos de testemunhas oculares da missão de Jesus e suas consequências. Infelizmente, toda essa informação está quase certamente errada.
Cada um dos quatro Evangelhos foi escrito anonimamente. Nenhum nome de autor aparece em nenhuma das primeiras cópias desses textos, sejam elas  parciais ou completas (até pelo menos o séc. V), e nenhum dos autores dá qualquer informação pessoal sobre si. O Evangelho de Mateus, por exemplo, refere-se ao apóstolo Mateus em terceira pessoa, mostrando que o autor e o apóstolo não eram a mesma pessoa.
O Evangelho de João, em 21:24, uma passagem que muitos acadêmicos consideram ser uma adição ao texto original, feita posteriormente por um autor diferente, alega como fonte do Evangelho alguém conhecido como o “Discípulo Amado”*, mas não diz que pessoa era essa. Por toda parte no texto encontram-se várias referências aos atos deste “discípulo amado”, mas em lugar nenhum o autor do Evangelho de João dá qualquer dica de que ele e o “discípulo amado” eram uma e a mesma pessoa. Enquanto o Evangelho de João claramente faz a distinção entre Pedro e o Discípulo Amado, e obviamente rejeita qualquer conexão entre o Discípulo Amado e Judas Iscariodes, não nos dá qualquer evidência direta sobre qual dos apóstolos ou outros discípulos de Jesus nós podemos identificar como sendo este indivíduo específico.
Se qualquer um dos doze apóstolos ou um de seus mais próximos tivesse escrito sobre as atividades de Jesus, seria de se esperar que tal texto tivesse se tornado um clássico instantâneo nos círculos cristão, largamente copiado, difundido, e citado, e seu autor frequentemente mencionado pelo nome por outros escritores cristãos (mesmo se o nome daquele discípulo não tivesse aparecido no texto). Contudo, com base em escritos dos primeiros quatro séculos do cristianismo, parece que até os últimos anos do séc. II, acadêmicos cristãos não tinham a menor ideia de quem havia escrito os Evangelhos. Foi só por essa época que alguns cristãos eruditos começaram a associar esses quatro Evangelhos com a tradicional identificação dos autores. Mas esses que fizeram tal identificação ou utilizaram fontes não confiáveis, ou simplesmente declararam essa identificação como correta sem qualquer prova que validasse a alegação. Antes desse tempo, os escritores cristãos aparentavam ver esses quatro Evangelhos genericamente como sendo as “memórias” dos apóstolos, sem qualquer atribuição específica, e identificados pelas características do texto, tal como, por exemplo, “os Evangelhos das genealogias” (referindo-se a Mateus e Lucas.)
Devemos notar, também, que esses não eram os únicos Evangelhos circulando entre os cristãos. Nos primeiros dois séculos do cristianismo, tem-se indicação de mais de trinta diferentes Evangelhos, muitos falsamente atribuídos ou aos apóstolos ou a outra pessoa mencionada nos Evangelhos tributados a eles. Entre os mais importantes desses outros Evangelhos, primeiramente devido à sua curta distância temporal dos acontecimentos, estavam o Evangelho de Pedro e o de Tomás. O evangelho de Tomás pode ter sido altamente popular nos círculos cristãos gnósticos e pode ter sido largamente distribuído nas comunidades cristãs. O Evangelho de Pedro foi amplamente difundido na Síria e, aparentemente, lido como escritura em algumas igrejas. Para o fim do séc. II, ele veio a ser visto como possivelmente contendo alegações heréticas sobre Jesus e perdeu o prestígio nos círculos pré-ortodoxos. A maioria dos acadêmicos dataria a autoria desses dois textos nos primeiros anos do séc. II, ou, talvez, nos últimos do séc. I, com alguns acadêmicos argumentando que um ou outro foi escrito antes dos quatro Evangelhos canônicos. 
A falsificação de Evangelhos e cartas e outros escritos atribuídos aos apóstolos e a outras figuras do tempo de Jesus parece ter sido alguma coisa de indústria caseira nos círculos cristãos durante os primeiros séculos. Vários documentos falsificados conseguiram até entrar no Novo Testamento. A maioria dos estudiosos versados no Novo Testamento acreditam que aproximadamente metade das cartas atribuídas a Paulo não foram escritas por ele, nem foi a Segunda Carta de Pedro escrita por Pedro, nem Jude escreveu Jude, nem James escreveu James**. As cartas de Paulo que os acadêmicos reconhecem como autênticas incluem I Tessalonicenses, Gálatas, Filêmon, Filipenses, I e II Coríntios, e Romanos. Essas sete cartas paulinas parecem ser os mais antigos escritos cristãos conhecidos, geralmente datadas dos primeiros anos da década de 50 do séc. I. 
 Wallace Oliveira Cruz

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