O relato de Gênesis 14.18-20 parece um episódio eminentemente histórico, da mesma forma que o resto do capítulo. A passagem nos fala da existência de um rei sacerdote de Salém (isto é, Jerusalém, com toda a probabilidade) chamado Melquisedeque, o qual achou-se na obrigação de saudar Abraão, que voltava da guerra e do morticínio dos reis da Mesopotâmia, entre Dã e Hobá (v. 15), e fornecer provisões para os soldados fatigados da guerra. Deu-lhe os parabéns pela vitória heróica e derramou uma bênção sobre ele, em nome do “Deus Altíssimo” (’El ‘Ēlyôn) — título jamais aplicado nas Escrituras a alguém que não o próprio Iavé. É óbvio que Melquisedeque era um verdadeiro crente que permanecia fiel ao culto ao autêntico e único Deus (da mesma forma que Jó e seus conselheiros do norte da Arábia, Jetro, sogro de Moisés, e Balaão, vindo de Petor no vale do Eufrates).
O testemunho de Noé e de seus filhos evidentemente fora mantido em outras partes do Oriente Médio, além de Ur e Harã. Houve, todavia, um aspecto de grande importância a respeito da maneira como Melquisedeque foi introduzido na narrativa: seus pais não são mencionados, não havendo declaração alguma a respeito de seu nascimento e morte. A razão dessa falta de informações se torna clara em Hebreus 7.3: “Sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de dias nem fim de vida, feito semelhante ao Filho de Deus, ele permanece sacerdote para sempre”. O contexto esclarece que Melquisedeque entrou em cena como um tipo do Messias, o Senhor Jesus. A fim de salientar essa característica típica desse sumo sacerdote, o registro bíblico omite de propósito a menção de seu nascimento, filiação, parentesco e linha genealógica.
Isso não quer dizer que ele não teve pai (pois até o antítipo, Jesus de Nazaré, teve o Espírito Santo como seu Pai — e sua mãe, Maria, é mencionada nos evangelhos) nem que ele jamais nascera (pois até Cristo, em sua forma humana, teve seu natal). É que o aparecimento dramático e repentino de Melquisedeque ficou mais saliente quando ele foi apresentado como porta-voz do Senhor a Abraão, servindo como arquétipo do futuro Cristo, que derramaria bênçãos sobre o povo de Deus. Melquisedeque apresentou-se como precursor ou tipo do grande Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, que desempenharia uma função sacerdotal muito mais elevada e eficaz que Arão e os levitas. Isso foi ensinado nos dias de Davi, em Salmos 110.4, referindo-se ao futuro Libertador de Israel: “O Senhor jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”. Hebreus 7.1, 2 salienta as características de Melquisedeque como tipo de Cristo:
1. Melki-sedeq de fato significa “rei da justiça”.
2. Ele era rei de šālēm, que vem da mesma raiz de šālōm, “paz”.
3. É apresentado sem menção de nascimento, filiação ou genealogia, como convém ao tipo do Verbo, o Deus eterno, que não tem começo nem fim, que se encarnou em Jesus de Nazaré.
4. Como o Sumo Sacerdote eterno, segundo a “ordem de Melquisedeque” (Sl 110.4), Cristo desempenharia um sacerdócio que substituiria de modo total o de Arão, estabelecido sob a lei de Moisés, o qual duraria para sempre, por causa da eternidade do Sumo Sacerdote divino, e era por isso imperecível (Hb 7.22-24).
A despeito das tradições fantasiosas mantidas e ensinadas por alguns rabinos (que apareceram bem cedo, ao surgir a seita de Qumran — cf. Fragmento de Melquisedeque da caverna 11), segundo a qual Melquisedeque teria sido uma espécie de anjo ou ser sobrenatural, os dados da própria Escritura apontam com clareza para a historicidade desse homem como sendo o rei de Jerusalém nos dias de Abraão. Sua descrição em Hebreus 7.3 como apatōr, amētōr, agenealogētos (“sem pai, sem mãe, sem genealogia”) não pode significar que Melquisedeque jamais teve pais ou linha de ancestrais, visto que ele era um tipo de Jesus Cristo, a respeito de quem nenhum desses adjetivos é literalmente verdadeiro. Antes, o texto simplesmente está dizendo que nenhum desses itens de informação foi incluído no registro de Gênesis 14 e que foram omitidos de propósito a fim de enfatizar a natureza divina e a impossibilidade de o Messias, o antítipo, vir a perecer.
Fonte: Enciclopédia de Temas Bíblicos
Respostas às principais dúvidas, dificuldades e “contradições” da bíblia
Gleason Archer
Editora : Vida – pgs: 81-82
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