Para ser de Deus, basta amar o silêncio, ouvir as estrelas e ensurdecer aos tambores marciais.
Para ser de Deus, basta desatar o nó da gravata, soltar os ombros e relaxar o nervo gripado. Por que viver amedrontado? Ninguém precisa temer o vigia incontestável dos religiosos.
Para ser de Deus, basta juntar-se por dentro – seja lá como for – não exorcizar as sombras da alma, admitir erros e tratar as ambiguidades como dádiva. Por que viver sob o jugo da culpa?
Para ser de Deus, basta não acordar com medo de algum castigo divino. O amor não se melindra com facilidade. Caminhar perto de quem nos acolhe na dor e nos incentiva na alegria, deixa a sensação de que qualquer viagem vale a pena. Se um todo-poderoso tudo sabe, e ainda assim insiste em emprestar o ombro, não é seu poder, mas o despojar de si que fascina.
Para ser de Deus, basta se dispor a viver diferentes circunstâncias com delicadeza: aparar as unhas do velhinho, participar de mutirão, andar a pé, cantar parabéns, chorar em corredor de hospital, comer buchada na casa de matuto e beber água na cabaça.
Para ser de Deus, basta curtir pequenas nostalgias. Quando abraçamos aquela saudade marota que insiste em não morrer, trazemos até o presente o passado bem vivido. Deus nos interpela a não segurarmos o fio da meada da tristeza. O Deus-invisivel também nos quer celebrando a plenitude da beleza nas ausências, inclusive as irreconhecíveis.
Para ser de Deus, basta que as preces sejam poucas e vagarosas. Orar é emudecer diante do mistério. Prece dialoga. Para conversar com o sagrado, a intimidade contemplativa deve ser tão secreta quanto o diário da adolescente.
Para ser de Deus, basta gostar dos diferentes dons que a vida proporciona: vinho tinto, cântico gregoriano, Bach, Chico Buarque, Catulo da Paixão Cearense, caldo de cana, banho de chuva, tarde fria, Martin Luther King, Vinicius de Moraes, cocada e Machado de Assis.
Para ser de Deus, basta manter-se sensível à lenta sístole e diástole do pulmão universal. Na cruel corrida pela sobrevivência do mais forte, sobrou esplendor, que só os humanos conseguem festejar: o lampejo do vaga-lume, o trabalho incessante da abelha, o voo do colibri, a ferocidade do tigre. Quem mais no universo percebe uma valsa no vai e vem das marés?
Para ser de Deus, basta se manter humano, sem nunca abandonar o desafio de se humanizar.
Soli Deo Gloria
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