03 janeiro 2015

A IGREJA PERSEGUIDA


SEGUNDA PARTE

Formação do Cânon do Novo Testamento.
Desenvolvimento da Organização Eclesiástica.
Desenvolvimento da Doutrina.

Apesar de considerarmos as perseguições o fato mais importante da história da igreja, no segundo e terceiro séculos, contudo, a par desse acontecimento efetuaram-se grandes progressos no campo da oranização e vida da comunidade cristã. Vamos considerar alguns desses fatos.

Já vimos que os escritos do Novo Testamento foram terminados pouco depois do início do segundo século. Entretanto, a formação do Novo Testamento com os livros que o compõem, como cânon ou regra de fé com autoridade divina, não foi imediata. Nem todos os livros eram aceitos em todas as igrejas, como escritos inspira­dos. Alguns deles, especialmente Hebreus, Tiago, Se­gunda de Pedro e Apocalipse, eram aceitos no Oriente, porém durante muitos anos foram recusados no Oci­dente. Por outro lado, alguns livros que hoje não são aceitos como canônicos, eram lidos no Oriente. Entre esses livros contam-se os seguintes: Epístola de Barnabé, Pastor de Hermas, Ensinos dos Doze Apóstolos e o Apocalipse de Pedro.

Gradual e lentamente os livros do Novo Testamento, tal como hoje os usamos, conquistaram a proeminência de escrituras inspiradas, ao passo que os outros livros foram gradualmente postos de lado e rejeitados pelas igrejas. Os concílios que se realizavam de quando em quando, não escolheram os livros para formar o Cânon. Os concílios apenas ratificaram a escolha já feita pelas igrejas. Não é possível determinar-se a data exata do reconhecimento completo do Novo Testamento, tal como o usamos atualmente, porém sabe-se que não aconteu antes do ano 300. Qualquer pessoa que leia o "Novo Testamento Apócrifo", e o compare com o conteúdo do Novo Testamento, notará imediatamente a razão por que tais livros foram recusados e não reconhecidos como canônicos.

Enquanto os primitivos apóstolos viveram, a reve­rência geral para com eles, como os companheiros esco­lhidos por Cristo, como fundadores da igreja e como homens dotados de inspiração divina, dava-lhes o lugar indiscutível de dirigentes da igreja até onde era necessário governá-la. Quando Lucas escreveu o livro dos Atos do Apóstolos, e Paulo as epístolas aos Filipenses e a Timóteo os títulos "bispos" e "anciãos" (presbíteros) eram dados livremente àqueles que serviam às igrejas. Entretanto, sessenta anos depois, isto é, cerca do ano 125, nota-se que os bispos estavam em toda parte, governando as igrejas, e cada um mandava em sua própria diocese, tendo presbíteros e diáconos sob suas ordens. O concílio de Jerusalém, no ano 50, era com­posto de "apóstolos e anciãos", e expressavam a voz de toda a igreja, tanto dos ministros (se é que existiam, o que é duvidoso), como de todos os leigos. Porém, du­rante o período da perseguição seguramente depois do ano 150, os concílios eram celebrados e as leis eram ditadas somente pelos bispos. A forma episcopal de governo dominava universalmente. A história de então não explica as causas que conduziram a essa mudança de organização, contudo não é difícil descobri-las.

A perda de autoridade apostólica fez com que se realizassem eleições de novos dirigentes. Os fundado­res da igreja, Pedro, Paulo, Tiago, o irmão do Senhor, e João, o último dos apóstolos, haviam morrido sem dei­xarem homens iguais a eles, com a mesma capacidade que eles possuíam. Depois da morte dos apóstolos Pedro e Paulo, num período de cerca de cinquenta anos, a História da Igreja tem suas páginas em branco. As realizações de homens como Timóteo, Tito e Apolo são desconhecidas. Entretanto, na geração seguinte, surgem novos nomes como bispos com autoridade sobre várias dioceses.

O crescimento e a expansão da igreja foi a causa da organização e da disciplina. Enquanto as igrejas esta­vam dentro dos limites que tornavam possível receber a visita dos apóstolos, poucas autoridades eram necessárias. Porém, quando a igreja se expandiu para além dos limites do Império Romano, chegando até às fronteiras da índia, abarcando muitas nações e raças, então se julgou necessária a autoridade de um dirigente para suas diferentes secções.

A perseguição — um perigo comum — aproximou as igrejas umas das outras e exerceu influência para que elas se unissem e se organizassem. Quando os poderes do Estado se levantavam contra a igreja, sentia-se, então, a necessidade de uma direção eficiente.
Apareciam, pois, os dirigentes para a ocasião. Essa situação durou sete gerações e fez com que a forma de governo se estabelecesse em caráter permanente.

O aparição de seitas e heresias na igreja impôs, tam­bém, a necessidade de se estabelecerem alguns artigos de fé, e, com eles, algumas autoridades para executá-los.
Veremos, neste capítulo, algumas divisões de caráter doutrinário que ameaçaram a existência da própria igreja. Notaremos, também, como as contro­vérsias sobre elas suscitaram o imperativo disciplinar para se impor aos herejes e manter a unidade da fé.
Ao inquirir-se por que foi adotada essa forma de governo, isto é, um governo hierárquico, em lugar de um governo exercido por um ministério em condições da igualdade, descobrimos que, por analogia, o sistema de governo imperial serviu de modelo usado no desen­volvimento da igreja. O Cristianismo não se iniciou em uma república na qual os cidadãos escolhiam os gover­nantes, mas surgiu em um império governado por auto­ridades. Eis por que quando era necessário algum go­verno para a igreja, surgia a forma autocrática, isto é, o governo de bispos, aos quais a igreja se submetia, por estar acostumada à mesma forma de governo do Estado. Convém notar que durante todo o período que estamos considerando, nenhum bispo reclamou para si a autoridade de bispo universal — autoridade sobre outros bispos — como mais tarde o fez o bispo de Roma.

Outra característica que distingue esse período é, sem dúvida, o desenvolvimento da doutrina. Na era apostólica a fé era do coração, uma entrega pessoal da vontade a Cristo como Senhor e Rei. Era uma vida de acordo com o exemplo da vida de Jesus, e como resul­tado o Espírito Santo morava no coração. Entretanto, no período que agora focalizamos, a fé gradativamente passara a ser mental, era uma fé do intelecto, fé que acreditava em um sistema rigoroso e inflexível de dou­trinas. Toda a ênfase era dada à forma de crença, e não à vida espiritual interna. As normas de caráter cristão eram aindas elevadas, e a igreja possuía ainda muitos santos enriquecidos pelo Espírito Santo, porém a dou­trina pouco a pouco se transformava em prova do Cris­tianismo. O Credo Apostólico, a mais antiga e mais simples declaração da crença cristã, foi escrito durante esse período. Apareceram, nessa época, três escolas teológicas. Uma em Alexandria, outra na Ásia Menor e ainda outra no norte da África. Essas escolas foram estabelecidas para instruir aqueles que descendiam de famílias pagãs, e que haviam aceitado a fé Cristã. En­tretanto, não tardou que tais escolas se transformassem em centros de investigação das doutrinas da igreja. Grandes mestres ensinavam nessas escolas.

A escola de Alexandria foi fundada no ano 180, por Panteno, que fora filósofo destestado na escola dos es­tóicos; porém, como cristão, era fervoroso em espírito e eloquente no ensino oral. Apenas alguns fragmentos de seus ensinos sobrevivem. Panteno foi sucedido por Clemente de Alexandria (que viveu em 150-215 apro­ximadamente), e vários de seus livros, (a maioria deles defendendo o cristianismo contra o paganismo) ainda existem. Entretanto, o maior vulto da escola de Ale­xandria, o expositor mais competente daquele período, foi Orígenes (185-254) o qual ensinou e escreveu sobre muitos temas, demonstrando possuir profundo saber e poder intelectual.

A escola da Ásia Menor não estava localizada em um determinado centro, mas consistia em um grupo de mestres e escritores de teologia. Seu mais expressivo representante foi Ireneu, que "combinou o zelo de evangelista com a habilidade de escritor consumado". Nos últimos anos de sua vida, mudou-se para a França, onde chegou a ser bispo e por volta do ano 200 morreu como mártir.

A escola do norte da África estava estabelecida na cidade de Cartago. Mediante um elevado número de escritores e teólogos competentes fez mais do que as outras em favor do Cristianismo, no sentido de dar forma ao pensamento teológico da Europa. Os dois nomes de maior expressão que passaram por essa escola foram os do brilhante e fervoroso Tertuliano (160-220) e o do mais conservador, porém hábil e com­petente bispo Cipriano, o qual morreu como mártir na perseguição de Décio, no ano 258.

Os escritos desses eruditos cristãos, e bem assim os de muitos outros que com eles trabalharam e por eles foram inspirados, serviram de inestimável fonte de informações originais acerca da igreja, sua vida, suas doutrinas e suas relações com o mundo pagão que a cercava, durante os séculos de perseguição.


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